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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A voz da experiência


Ele acorda em sua naturalidade. Antes mesmo do primeiro galo cantar já se sente o cheiro do café cozinhando ao fogo, antes de ser filtrado no acabrunhado coador de pano. No simples e pequeno fogão, as forças para o dia de trabalho desgastante e impiedoso como sempre buscam combustível na macaxeira, na ginga e tapioca que serão o mesmo almoço do dia a dia, com o peso de cinqüenta e quatro anos de maré talhados em cada ruga, na pele, no corpo inteiro.
A repartição é o mar, a sua imensidão infinita. Sabe bem que os peixes rareiam a cada dia, mas tem de cor e salteado os locais exatos em que os brincantes podem ser fisgados. Os longos dias no oceano tem as suas distrações, entre o fumo mascado ou o cigarro de palha, as estórias impressionantes em meio às pedras da bicuda e da baixinha, entre naufrágios e peixes fabulosos, entre contos, causos e sereias de quem apenas sonha antes do nascer do sol.
Com a pressa nada acanhada dos ventos de agosto, se aproxima de mais um causo. Uma draga aparentemente sem rumo está presa em umas das pedras que amaldiçoam o porto de Natal, que impedem qualquer embarcação de grande porte adentrar nas águas do Potengy. Chamado para um bico, passa a transportar operários e engenheiros que trabalham na missão de desencalhar o barco preso à rocha. Observa atentamente mergulhadores soldarem em vão o casco da nau, rebocadores frustrados a tentar levar o barco para alto mar.
Transporta gente importante. Ao menos tem esta certeza em sua simplicidade, timidez de quem imberbe já abdicou da chance de saber ler, se lançando ao mar como a única e verdadeira opção de quem nasce no verdadeiro Brasil profundo. No que os letrados chamam de ignorância, não compreende a razão de tantos cálculos, tamanho aperreio. Ao sugerir que se puxe a draga em direção da praia, a censura do riso que subestima lhe dói, mas não retira a sua dignidade.
A nova rotina é rentável, os peixes não abundam como antes. Segue transportando operários que injetam ar para retirar a água do casco do navio, leva os mergulhadores que lastimam perceber que todo o trabalho de solda é inútil e se perde entre uma maré e outra; Impressiona-se com a força dos até quatro rebocadores, imponentes e impotentes em tantas tentativas.
Sente saudades da solidão, do horizonte que é apenas seu, de seu ramerrão. Não agüenta em verdade tanto desperdício, tanto esforço letrado que não sente o óbvio: experiência e sabedoria não se ensinam na academia. Em sua insistência, perguntado pelos doutores se caso a sua sugestão naufragasse o barco ele pagaria o prejuízo, a resposta não poderia conter mais sabedoria: “então se o senhor tirar me paga o preço dele também?”.
A draga La Belle foi finalmente desencalhada seis semanas após o acidente, quando a voz simples de um homem do povo foi considerada e ouvida. Na existência, sempre haverá os boçais da objetividade, aqueles que só enxergam diplomas e tem fiúza de seu preparo. Muitos doutores, em todo e qualquer campo do conhecimento desprezam o mais elementar argumento de autoridade: O verdadeiro especialista é aquele que se deleita com a realidade.

Um comentário:

  1. Achei o texto de simples grandeza.Qualquer semelhança com o pescador não seria mera coincidência...gostei!

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